terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Coração apaziguado ou... a arte de fazer as pazes com o coração

Ao fim de muitos anos o meu coração apaziguou-se, talvez tenha feito as pazes com a Terra... Em boa verdade, não foi com a Terra porque nunca esteve zangado com ela. Nem com a Terra nem com as gentes e por isso senti sempre vontade de regressar. Apaziguou-se com ele próprio, e depois comigo, tranquilizou os ímpetos, amainou as vontades mais escondidas por trás de uma aparente felicidade. Durante anos não fora um coração feliz; foi ansioso por qualquer coisa que procurou infinitamente sem encontrar e que julgava que ali poderia estar. Foram buscas sem fim, encontros de equívocos que resultaram em (des)enganos incompletos, tristes, sem sentido.
Por fim, depois de tanto tempo, olhar para o presente sem regressar inevitavelmente ao passado era uma vitória pessoal. A certeza da vontade era que nada mais do que foi deveria regressar. Cada experiência era isso mesmo: uma vivência única e irrepetível, e o que lá vai já foi. Não queria que o passado fosse apagado. Cada minuto antes vivido faz parte de mim e conduziu-me ao que hoje sou. Mas a vontade de reviver o que se esgotou há muito desvaneceu-se, desapareceu envolta em névoa. De repente tive a sensação de que todos os encontros e momentos vividos, felizes ou não, merecem apenas ser lembrados como se de um conto se tratasse. Ao revisitar alguns locais apeteceu-me apenas rever essas lembranças começando o descritivo da memória com a frase: "Há muito muito tempo passei uma longa temporada aqui...".

Agora, mais do que nunca, sinto o coração apaziguado, tranquilo, descontraído e o que me dá essa certeza é que posso vir e partir para de novo regressar sem correr o risco de viajar aos pedaços. A cada vez que retornar e voltar a sair faço-o inteira sem deixar parte do meu coração por ali perdido...

São Tomé, 10/09/2014

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

A caminho de São Tomé... ou talvez não... parte 2

Passava das 5h da manhã quando embarcámos; descolámos depois das 5h30. Ao entrar o avião pareceu-me ter acabado de entrar num engarrafamento em hora de ponta. O voo devia estar praticamente cheio e a desorganização dos passageiros era enorme: pessoas em pé, com resistência em se sentar, malas, sacos, pacotes que saíam para fora do porta-bagagem. A hora era tardia, o cansaço começava a fazer-se sentir e eu não me sinto confortável com ajuntamentos. Por milésimos de segundo a vontade que tive foi desatar a correr dali para fora. Contrariando os meus ímpetos furiosos limitei-me a respirar fundo na expectativa de encontrar um espacinho livre de gente onde me pudesse esticar por umas horas de olhos fechados. Alegrei-me ao vislumbrar três filas centrais abandonadas por todos os que tinham entrado antes de mim. Ninguém parecia querer aqueles lugares e num rasgo de sorte a hospedeira que por ali circulava sorriu perante o meu ar ansioso ao perguntar se podia ocupar uma das filas. Passei a viagem esticada nos três bancos com os correspondentes cobertores por cima do corpo e as três almofadas a embalarem o meu imaginário, envolvendo o descanso merecido. Eu dormi, tinha mesmo de ser assim, perdi o pequeno-almoço, antecipado para as seis e qualquer coisa em resultado dos atrasos, e o almoço que, pela mesma ordem de razões, também passou para as 10h da manhã. A esta hora, semi-acordada, a procurar recuperar o estado de consciência mas sem imaginar a forma como o estômago receberia os alimentos cozinhados oferecidos no catering do avião, procurei perceber como é que os outros assumiam a viagem. Foi terrível, quase catastrófico para o meu estômago, ver alguns - muitos - beber vinho tinto às 10h10 sem terem nada no bucho e como se não houvesse amanhã, repetindo sempre que possível. Foi igualmente estranho ver quase todos comerem ravioli com queijo e cogumelos tão cedo. Fui incapaz de tal façanha e fiquei-me por um sumo de maçã e pão com manteiga.
Enquanto estabelecia conjecturas acerca dos hábitos alimentares dos viajantes de aviões com atraso, percebi que o tempo até passou depressa dentro do grande pássaro de asas longas. Sobrevoávamos a ilha de São Tomé e em breve aterraríamos no Aeroporto Internacional. Antes disso entregaram-nos uns questionários de avaliação do serviço e do voo. A tripulação não teve certamente culpa mas há coisas fantásticas nestas avaliações, das quais também sou normalmente adepta. Pedem-nos para avaliarmos o sistema de audio e video mas o avião não dispunha dessas funcionalidades... nem uma TV com filmes ou documentários, nem música clássica, africana, pop ou pimba. Foi um voo sem animação, pelo que não havia como avaliar. Também não havia campo para comentários, reclamações ou sugestões e por isso quem o quis fazer teve obrigatoriamente de rabiscar o formulário sem garantia de alguém ler estas anotações. 




À nossa chegada, o céu estava nublado, escuro, cinzento, pesado, intercalado com uns tímidos raios de sol fazendo emergir uma luminosidade que indiciava calor húmido. Fez-me lembrar outras chegadas, outras experiências, outras vivências... 
Nova fila nos aguardava na pista do aeroporto, desta feita para a monitorização do ébola. Parecia uma cena de filme. Técnicos e enfermeiros artilhados de máscara e luvas mas suficientemente descobertos na pele para poderem ser contaminados no caso de contacto com doentes infectados. A tez era séria porque o assunto requeria cuidados e atenção. Iam apontando um termómetro electrónico ao olho direito de cada passageiro que entregava uma ficha devidamente preenchida com dados sobre a origem e os contactos anteriores. Para não variar, seguiu-se a fila novamente formada para o controle dos vistos de entrada e, por fim, num edifício interiormente remodelado, chegámos à sala de recolha de bagagens. Ao fim de tantos anos - 15, 16? - a confusão persiste. O que melhorou foi o ar condicionado, a iluminação e o aspecto mais clean. De resto, tudo continua invariavelmente na mesma. Para nós, a desorganização que se vive na sala multiplicou-se à conta dos caixotes e dos rolos, sem carrinhos disponíveis e enorme dificuldade em chegar à frente. Aguarda-se a colocação da bagagem fora do formato, o que significa esperar de novo pelo fim... O maior problema surge, conforme esperado, no controle das bagagens. Desta vez, as malas nem sequer foram abertas mas os caixotes recolheram atenção e como o conteúdo eram manuais escolares em grande quantidade para entregar nas escolas, foi entendido que teriam de ter uma guia de exportação. Como fazer para que os técnicos da Alfândega entendessem que se tratava de uma acção de cooperação? Não havia nada a fazer, não entenderam e confiscaram, supostamente para verificação, caixotes e rolos de cartazes, no caso referentes ao tema da biodiversidade. Complicações africanas... resta-nos a resignação... até porque se segue um dia marcado por um atraso de horas...

05/09/2014

A caminho de São Tomé... ou talvez não... parte 1

Uma vez mais, a aventura começou. A caminho de São Tomé mas sem ter sequer saído do aeroporto. A chegada foi antes das 22h e a fila para o check in era de tal forma grande que dava várias voltas apertadas; o balcão nem se via. Tantas e tantas vezes fiz esta viagem e ainda não tinha tido esta dupla experiência: a de viajar pela STP Airways; e a de ter uma longuíssima noite de espera. Há atrasos e atrasos e este bateu o record de todas as possibilidades. Na fila a espera para chegar à frente e despachar as malas durou mais de 2 horas e a noite parecia ser ainda uma criança porque o que estava para vir nem se tinha anunciado. O aeroporto estava quente, abafado, cheio de gente que circulava para a frente e para trás sem destino ou objectivo, falando ora com um ora com outro, na maioria eram conversas de ocasião com um sorriso aberto espelhado na face. As nossas caras espelhavam apenas surpresa e perplexidade. Procurámos estar a horas para nos reunirmos e tratarmos de despachar a bagagem pessoal e as caixas com o material para a formação e a distribuição. De facto não contámos com aquele cenário e nem sequer pensámos ser possível. Esperar era a palavra de ordem e não valia a pena o desassossego que nos invadia o corpo, a alma e o coração. Em pé passámos as duas longas horas até chegarmos ao balcão, depois disso foram muitas mais. A sensação que ficou da espera foi asfixiante e atrofiante, piorando ao escutar o aviso feito pela hospedeira: a partir daquele momento ainda deveríamos contar com um atraso de mais de cinco horas. Resignei-me com enorme desconforto. Nada podia fazer... Saímos dali e montámos arraiais junto ao guiché 101 da Alfândega. Nós, os caixotes, as malas pequenas que nos acompanhavam para a cabina e os rolos com os cartazes temáticos. Enquanto um colega tentava resolver as questões burocráticas com a papelada eu e a outra colega adoptámos os tapetes de dois guichés fechados para descansar as pernas e assentar ideias.
A espera estava por ali para me fazer companhia durante aquela noite em que o descanso parecia ter-se ausentado sabe-se lá para onde. Dei comigo a pensar que com a TAP nunca passei semelhante tormenta e que apesar das queixas que se podem fazer à companhia, para mim continua a ser uma referência. Não fora o ébola e a alteração na rota da TAP com escalas no Gana tanto na ida como no regresso e tudo seria como dantes...
Subimos em busca do suposto snack que nos seria entregue no piso da restauração mas como sempre todos os serviços estavam entretanto encerrados. Contentei-me com um pacote de batatas fritas, um pacote de maltesers e uma água que comprei na máquina enquanto os meus dois colegas descansavam os olhos dormitando tranquilamente numa cadeira desconfortável da sala de embarque...

05/09/2014

em paz...

"Não são apenas os loucos que procuram as cavernas e os lugares tranquilos, mas também aqueles que por terem a alma em paz acabam por desprezar os assuntos dos homens.
Quando o espírito, oprimido pelas inquietações exteriores, aspira ao repouso do corpo, evade-se para os lugares tranquilos; e aí, desperto logo cedo, faz em si mesmo o percurso do país da verdade (...)"

Hipócrates in "Do Riso e da Loucura"

sábado, 27 de dezembro de 2014

Noite de Consoada

Consoada familiar e tranquila. Regresso a casa com a habitual passagem pelas ruas da Baixa para ver as iluminações e escolher a mais bonita rua de Lisboa. Um ritual que me acompanha desde que me lembro de ser gente. As ruas estão aparentemente desertas e as iluminações tentam dar cor e vida à cidade que parece deserta. Só parece porque os "sem abrigo" continuam por ali. Ao sair da casa que foi da avó e hoje é da tia onde sempre se passou a noite de 24, o coração aperta ao ver que as carrinhas da Comunidade Vida e Paz também circulam por ali, estando uma parada na Praça da Figueira e outra no Rossio. E isto tem dois significados: um desolador e outro espantoso. O primeiro diz-me que, de facto, a cidade continua a ter pessoas que vivem na rua - cada vez mais - e que não são apenas adictos ou desestruturados. São pessoas que perderam muito, quase tudo. Quase porque continuam com vontade de viver mesmo sem ter a possibilidade de apreciar o brilho das luzes, as cores ou o movimento das ruas. Pessoas que um dia foram como eu e que hoje não têm Natal, que tudo o que desejam é ter um sítio quentinho para dormir e que por isso se deitam em cima das grelhas de respiração do Metro. E ali estão uns quantos deitados no cartão que colocaram na grelha e outros que se aproximam de quem lhes pode dar o conforto de uma palavra, um copo de leite quente ou uma sandes. Aperta o coração. O significado espantoso é que, para que a carrinha circule e possa confortar na mínima proporção os que não têm qualquer conforto, há equipas de 4 a 5 pessoas que deixam de ter consoada, saem do conforto das casas da família e afastam-se das lareiras para passarem uma noite de reencontros gratificantes com quem nada tem, nada espera e agradece tudo. Acabámos por parar na Praça da Figueira e entregámos o que horas antes planeámos em excesso: um bolo rei, uma caixa de broas e outra de sonhos de leite. Não foi uma acção extraordinária de abnegação porque nada do que demos nos fazia falta e representou apenas numa migalha do que poderíamos ter feito naquela noite. Mas ajudou-me a perceber que gostava de regressar às equipas de distribuição de alimentos e conforto das quais fiz parte há tantos anos... 91...? 92...? Pensar que tantas e tantas vezes temos em excesso e que poderíamos partilhar... Pensar que com um sorriso e uma palavra podemos melhorar a noite desassossegada de quem dorme na rua... Dá vontade de regressar àquelas equipas... 

Manual de sobrevivência em meios socialmente hostis

Presenciando cenas pela manhã bem cedo recordo uma pessoa que conheci em São Tomé e Príncipe há uma eternidade e de quem perdi o rasto há ...